Partos anteriores
Escrevo no intuito de colaborar na luta permanente pela humanização do nascimento, fortalecer as mulheres que buscam o parto normal após cesárea, incentivar aquelas que ainda são levadas a crer em mentiras (de que não aguentamos um parto natural) e ampliar a percepção, para demais pessoas na sociedade, da importância da humanização do nascimento. Penso que essa discussão deveria sair da esfera estritamente obstétrica e ganhar espaço, inclusive, na educação de jovens. Quero dizer que sim, somos todas capazes de parir, que parir dói, mas nos fortalece além do que imaginamos!! Este relato é também um desabafo de tudo que ficou guardado em minha alma feminina por tantos anos e que pude parir junto com Anahy no dia 11 de março de 2016.
Nossa primeira filha, Maíra, nasceu dia 14 de dezembro de 2005 em Porto Alegre, RS. Durante a gravidez estava convicta que queria parto normal, li o livro “Parto ativo” sonhando em parir de cócoras, pois me parecia muito natural. Nem sabia o que era “violência obstétrica”. Morava em Manaus e meu marido no interior do Amazonas, distante 4 dias de barco… passamos a gravidez nos vendo uma vez por mês. Fiz a coleta de dados de meu mestrado, na floresta, até o sexto mês de gestação. Em dezembro ele foi comigo ao RS, onde vive minha família, para acompanhar o parto. Entrei no Hospital de Clínicas com 3 cm de dilatação e contrações regulares, fui bombardeada com intervenções desnecessárias: indução imediata com ocitocina, rompimento de bolsa, monitoramento fetal constante, exame de toque a cada hora por médicos diferentes, deitada para o lado esquerdo durante todo TP. Ao final de 12h ela nasceu via vaginal, porém só fui vê-la e amamentá-la quase 9h depois…Lembro como se fosse ontem a carinha dela, quando foi colocada ao meu lado… Abriu os olhos de imediato, me olhando fixamente… Fiquei triste, frágil, chorava sem saber porquê. No momento do expulsivo não sentia bem as contrações e fizeram episiotomia (corte na vagina). Entendi que fui cobaia de uma equipe médica, onde todas mulheres recebem tratamento igual sem considerar a fisiologia de cada uma. Haviam prazos para dilatar, para expulsar o bebê, as intervenções foram realizadas sem meu consentimento, não pude beber água nem ir ao banheiro durante todo TP… Primeiro dia no hospital, quarto coletivo do SUS, tive rachadura na mama. Sangrava…Entrou uma equipe de médicos residentes no quarto, o “professor” se dirigiu a mim, pegou meu mamilo sem sequer dizer bom dia, e virou para os estudantes: “este é um caso típico de rachadura de mamilo”. Eu estava tão cansada, tão frágil, não consegui ter reação alguma. Hoje, eu daria um tapa na cara daquele imbecil. Durante anos não entendi nada.
Nossa segunda filha, Anita, nasceu dia 12 de março de 2010 também em Porto Alegre. Morávamos em Lavras, Minas Gerais. Durante a gravidez tive algumas intercorrências que hoje compreendo terem sido neuroses da obstetra (ameaça de aborto, depressão, etc), que me fizeram ter uma gravidez sedentária. Continuei sonhando com o parto de cócoras, e teria a assistência de minha médica no sul que conhecia desde minha adolescência. Estava segura. Fui a Porto Alegre novamente para ficar próxima de minha mãe no parto. Porém, no dia 4 de março ela sofreu um AVC e ficou em coma sem leito disponível nem médico para assisti-la no SUS, acomodada na emergência. Enfrentamos o sistema de saúde com liminares na justiça e buscando apoio da mídia para conseguir um leito para ela. Meu telefone não parava de tocar, advogado, amigos dando apoio, oferecendo ajuda, repórteres oportunistas querendo com meu momento atingir a prefeitura….fomos aos jornais, à televisão, valia tudo. Esqueci tudo que eu sabia sobre biologia, acreditando até o último momento que ela iria voltar… O desgaste foi enorme, dia 10 de março o médico que cuidava do caso dela (clínico geral) disse sonoramente “cuide do seu bebê que está para nascer que sua mãe não tem mais volta” eu estava então com 38-39 semanas…. Lembro que gritava, me desesperei naquela emergência de quinta categoria, perdi o controle, e esqueci completamente que estava às vésperas de parir. Ao final minha médica sugeriu uma cesárea porque eu estava muito abalada e tinha medo que algo pior acontecesse à minha mãe e eu ainda estivesse grávida. Não questionei, estava sem controle algum de minha vida naquele momento. Marcamos para o dia 12. Lembro de que a cada aparato que iam colocando em meu corpo (dispositivos para monitorar coração, sonda, soro…) me lembrava a condição de minha mãe no hospital, com os mesmos aparatos, só que ela estava inconsciente. O médico anestesista perguntou se minha mãe fumou durante a vida, respondi que sim. Então ele me disse “a saúde cobra seus pedágios mais cedo ou mais tarde”. Nenhum daqueles médicos tinha noção de quem era aquela mulher que estava em coma.
Anita nasceu às 20h. Mamou nos dois peitos de imediato e foi para o colo do pai. Chorei ao escutar seu chorinho. A visão de minhas pernas sem movimento após a cirurgia foi um terror. Tive hipotermia, minha temperatura foi a 33 graus, tremia tanto que perdi o controle do meu corpo e me cobriram com vários edredons. Senti medo. Fui para o quarto já às 2h da manhã. Às 5h minha prima entrou no quarto e recebi a notícia do falecimento da minha mãe… Eu queria ir a cremação, me despedir… mas com uma cesárea não poderia sair do hospital antes de 48h. Eram então duas dores, a perda de minha melhor amiga e os cortes da cesárea, que levaram 3 meses para cicatrizar. Ainda no quarto do hospital vi na televisão a morte de minha anunciada como “a Senhora que estava aguardando um leito… mais um caso que o SUS não resolveu”. Na família todos estavam em choque. Ela era uma mulher muito forte, unificadora, apaziguadora e necessária a todos.
Não tínhamos intenção de ter mais filhos, mas em 2015 mudamos de idéia simplesmente porque adoramos crianças!! Na primeira tentativa tive um aborto espontâneo, precisei curetagem. Foi sofrido, mas no mês seguinte engravidei outra vez!
Gestação
Decidi que este parto seria o que eu desejei sempre, e que seria em casa com a presença de minhas duas filhas, futuras mulheres que poderiam vivenciar como podemos trazer as crianças ao mundo de forma respeitosa. Passei o primeiro trimestre no Chile, sozinha, realizando um estágio do meu doutorado, que curso em Lavras. Ao retornar para casa engrenei uma gravidez extremamente ativa: ioga, meditação, pilates, radicalizei a alimentação saudável, leituras e mais leituras sobre tudo a respeito de parto e preparo para o parto. Procurei exorcizar alguns medos: o de que eu era uma gestante de risco pela minha idade (37 anos) e de ruptura uterina pela cesárea anterior.
Estudando entendi porque passei por tudo que passei nos dois partos anteriores. Infelizmente a realidade é que não basta para uma mulher querer ter um parto natural, ela precisa estudar, se informar, se preparar muito, muito, muito…...e principalmente…contar com uma equipe humanizada! Mas humanizada de verdade. Soubemos que seria outra menina, que alegria! E já começamos a chamar ela de Anahy, nome de origem guaraní. Fiz contato com uma equipe de Divinópolis, Rebeca (doula), Fabiana (enfermeira obstétrica) e Larissa (obstetriz) e elas aceitaram me assistir. Durante o pré-natal fazia consultas com a equipe domiciliar aqui na cidade, junto a uma amiga que estava com idade gestacional próxima a minha. Foi essa amiga que me colocou em contato com a equipe e serei eternamente grata a ela por isso. Formamos um grupo de gestantes via whatsapp e iniciava um grupo de empoderamento de mulheres que buscam parir com dignidade. Meu médico obstetra aceitou e apoiou minha decisão de parir em casa e me assistiria no hospital se fosse necessário, colocando-se à disposição como “back-up” da equipe domiciliar. E o sonho foi semeado! Passei os nove meses idealizando este parto (embora dissesse a mim mesma que não faria isso e deixaria tudo fluir do jeito que viesse).
Sempre gostei muito de estar grávida. Sempre me senti disposta e ativa. E esta foi a gestação mais tranquila de todas, pois estava no melhor dos mundos, com meu marido junto, as meninas independentes, uma equipe humanizada auxiliando, muitos medos exorcizados, tranquila e ativa durante todo tempo. Ao final da gravidez tive uma forte candidíase que me fez tomar uma atitude radical: eliminar todo açúcar da minha alimentação. Após alguns dias me sentia muito melhor, curada, e com uma disposição tremenda. Intensifiquei os exercícios de ioga e meditação em casa, e trabalhava muito o mantra “A” que minha professora recomendou muito para o momento do expulsivo. Além disso, exercitei o períneo com o aparelho epi-no para ter melhor percepção corporal. Tanto o epi-no quanto os mantras e as contrações do períneo considero que foram fundamentais para o sucesso do parto.
Ao longo da gestação conversamos muito com as nossas filhas sobre o parto, a importância de um nascimento respeitoso e procedimentos baseados em evidência, assistimos vídeos diversos de partos. Elas estavam muito ansiosas por acompanhar o nascimento da irmã…E eu sonhando em viver isso junto as minhas pequenas futuras mulheres.
Completaria 40 semanas dia 10 de março. No entanto, após as leituras me preparei para que pudesse acontecer até as 42 e procurei nas últimas semanas desligar de tudo que tivesse relação com o nascimento para relaxar. Não queria ler mais nada a respeito de parto, não queria mais ver vídeo algum…Desde a 37ª semana tive contrações fortes (pródromos) durante alguns períodos da noite, e pensava que estava mesmo perto de chegar o momento!
O parto
No dia 9 de março fui à tardinha buscar minhas filhas na escola andando, para ajudar a “chamar o parto”…Escutei relatos de mulheres que trabalharam no “pesado” até o último dia de gravidez e que o trabalho de parto engrenou. Mas estava certa de que iria demorar ainda mais uma semana…
Lá pelas 21h comecei a sentir contrações fortes, liguei para Rebeca (doula) que sugeriu monitorar. Baixei um aplicativo no meu celular e fiquei monitorando. Estava de 5/5 minutos. Por volta da meia noite a equipe avisou que viria para Lavras. As contrações estavam fortes e não pude dormir. Passei um tempo no chuveiro para aliviar as dores. Depois, meu marido organizou um esquema na rede que me deixou confortável. Fiquei sentada na rede, debruçada em uma pilha de travesseiros, e com a bola de pilates embaixo. Sentia vontade de vocalizar e assim passei a madrugada. Nem percebi o tempo…. às 5h a equipe domiciliar estava aqui em casa. Fiquei muito emocionada quando elas chegaram pois então caiu a ficha de que Anahy estava mais perto! Fiquei feliz! Rebeca já iniciou as massagens a cada contração e fui pro chuveiro outra vez, vocalizava a cada contração. Minhas filhas acordaram logo em seguida e estavam felizes também. Maíra disse que me escutou gemer e que ficou preocupada, mas quando viu a alegria de todos ficou tranquila de que o momento estava chegando.
No meio da manhã caminhei pelo quintal. Sentia vontade de me agachar e parecia que era a única posição que aliviava as dores. Já não sentia vontade de gritar, pois tinha a impressão de que gritando minhas energias iam junto. Então passei a praticar respiração profunda, soltando o ar a cada contração. Ao final da manhã entrei na piscina e o alívio foi imediato.
Anita, minha filha mais nova, quis entrar na piscina comigo e ficou brincando, fazia massagem em meu rosto... Simão, meu marido, fez do-in nas minhas mãos, que aliviava muito. Almocei, bebi água. O movimento na casa era grande, ele estava presente todo momento, mas também precisava cuidar das crianças. Ele fez também um chá de pimenta, cacau, gengibre e mel, que pedi para me dar mais ânimo. Senti sono, Fabi sugeriu que descansasse, mas não tolerava ficar deitada. Queria agachar nas contrações.
À tarde descansei um pouco na rede. Pedi que as crianças não fossem a escola, pois tinha medo de que nascesse Anahy e elas não estivessem presentes. Elas ficaram no quarto brincando no mundo delas, vindo de vez em quando me ver. No entanto, chegando ao final da tarde elas começaram frequentemente perguntar quando iria nascer.
Isso foi me deixando angustiada, mas assim mesmo não me ocorreu de pedir a minha amiga que estava à disposição levá-las de casa por um tempo. Acreditava que meu TP seria rápido. Doce ilusão!
Perto do final da tarde Rebeca me convidou pra dançar. Escolhemos algumas músicas e dançamos. No entanto, por algum motivo eu ainda estava muito racional e comecei a me perguntar em que momento eu iria desprender da realidade. Pedi para beber um amarula, um licor com cacau muito alcóolico, para ver se eu desligava um pouco, mas só me deu mais sono… Fabi sugeriu fazer toque, mas eu tinha receio de ficar ansiosa e preferi não fazer. Rebeca aplicou a técnica do rebozo, que consiste em usar um pano bem largo no quadril e sacudir. A sensação era boa. Em seguida Simão me fez uma massagem tão intensa que senti nela todo seu amor por mim, por nós, chorei muito.
Ao final do dia o tampão mucoso começou a sair. Eu estava até essa hora tensa, pois nada acontecia. Quando ele desceu em maior quantidade chorei de alegria! De fato ela estava por nascer! Às 19h30 Fabi fez um toque, e eu disse que não queria saber minha dilatação. No entanto, senti que não estava muito avançada pelas caras de todos (depois soube que estava com 4 cm apenas). Nessa hora fiquei tensa, com medo. Já me sentia muito cansada, mas não conseguia deitar. Sempre que deitava vinha à minha mente o parto da Maíra, em que fiquei deitada 12h sem poder me mexer…
Tinha passado o dia me movimentando e agachando a cada bendita contração! Não deitei nem descansei de verdade em momento algum…Minhas filhas foram dormir um pouco frustradas pela demora, e isso estava me incomodando (só percebi que estava incomodada depois do parto, relembrando). E mais uma noite seguiu, fiquei pouco na piscina, pois percebemos o quanto minhas contrações haviam espaçado após a água. Era como se meu trabalho de parto tivesse estacionado, As contrações ficaram muito espaçadas, a cada 10 minutos, e eu dormia entre elas. Durante a noite fiquei no ambiente que havia preparado, com uma luz azul que acalmava e música suave ao fundo.
Quando já eram 1h da manhã do dia 11 Fabi sugeriu fazer outro toque, desta vez quis saber, estava com 8 cm. Pensei, puxa tudo isso e ainda estou com 8cm?? Quando lembro desse meu pensamento morro de arrependimento, pois estava tão perto… A bolsa estava com uma rotura alta, iniciou perda de líquido bem devagar e rajadas de sangue. Fabi sugeriu terminar de romper, aceitei. Passei a madrugada um pouco deitada. Era tão difícil deitar…hoje me pergunto como consegui parir Maíra deitada!!
Às 5h outro toque, ainda os mesmos 8 cm e havia se formado um edema no meu colo (como um inchaço, que não permite ele dilatar mais). Soube depois que com o colo assim, no hospital seria cesárea na certa. Então Rebeca e Fabi me colocaram na posição de Gaskin, para aliviar a pressão sobre o colo. Era dolorido demais, pois deveria ficar com o quadril elevado bem no momento da contração, com elas aplicando uma massagem que era uma tortura, quase não suportava. Pedi para parar com aquilo, elas sugeriram que eu ficasse realmente deitada, pois precisava aliviar a pressão sobre o colo. Fiquei então, pela primeira vez durante todo TP, deitada pro lado esquerdo. Simão ficou massageando meus pés com do-in durante 3h ininterruptas!! Dormi.
Descansei até as 8h, outro toque foi feito, estava com 8/9 cm e colo sem edema, 90% apagado. Disse que eu estava muito cansada, queria uma anestesia, uma cesariana, qualquer coisa para acabar com aquilo tudo!!!! Não aguentaria mais nada, queria meu bebê em meus braços… Desesperei de verdade… Às 8h30 foi comunicada a transferência ao médico, que esperaria no hospital. Falei para as meninas que iria para o hospital, Maíra chorou…me penalizo muito sempre que lembro disso, ficou guardado na memória…Ficamos aguardando até 10h, pois o médico tinha outro compromisso e ainda não estava lá. Saímos para o hospital de carro, que fica a uns 5 minutos de casa. Fui no caminho me sentindo a mulher mais derrotada do mundo….tanto preparo, tanta dedicação, tantas horas em casa para acabar caindo no hospital e ainda fazer uma cesariana! Me senti o lixo, incapaz, impotente, ridícula, inferior…..
No hospital ainda tivemos que fazer ficha e esperar para subir até a suíte da maternidade. Durante as contrações ficava abraçada na Rebeca, e esse apoio foi fundamental. Me sentia segura, acarinhada, consolada. Estava totalmente entregue a tudo, entregue mesmo, não me importava mais nada que fosse acontecer. Tive medo de morrer. Esqueci de tudo que planejei, esqueci das músicas que queria no meu parto, esqueci, esqueci….o cansaço me venceu.
Cheguei no hospital falando pro médico que queria uma analgesia ou uma cesárea, qualquer coisa que acabasse com aquilo tudo, estava cansada demais. Ele me fez o toque e disse que eu estava com 9 cm, e que não valia a pena fazer uma cesárea, já que faltava tão pouco. Sugeriu que induzisse com ocitocina bem de leve, para fazer com que minhas contrações entrassem num ritmo mais rápido outra vez, já que havia horas que elas haviam estacionado. Fiquei com medo pois tinha lido que com cesárea anterior não deve haver indução. Rebeca me disse que neste caso nem seria uma indução, seria uma condução pois já estava muito perto. A ocitocina nesta situação somente iria fazer com que minhas contrações ficassem mais ritmadas, de minuto a minuto. Aceitei, mas acreditando que iria ser cesárea pois pensava que não seria capaz de suportar uma só contração. Estava certa de que não suportaria mais nada. Ficaram no quarto comigo meu marido, a equipe domiciliar e o médico.
Às 10h30 foi iniciada a indução com ocitocina, o médico colocou glicose também e me deu uma reavivada, eu estava um caco humano. Quando as contrações voltaram de minuto a minuto, não tinha tempo nem de pensar. Fui pro chuveiro e lá fiquei, agachada e respirando profundamente a cada contração. Já não pedia Rebeca por perto, nem Simão, nem ninguém. Não gostei da banqueta, sentia desconfortável, queria só ficar de cócoras mesmo. E as contrações foram ficando mais fortes, e meu intestino começou a esvaziar. A partir desse momento parece que tudo a minha volta perdeu importância….havia entrado na partolândia! Em um dado momento resolvi sair do chuveiro, foi meio instintivo, só sei que sentí “chega, preciso sair daqui”. Então me lembro de Rebeca me perguntando “Onde você quer dar a luz?”. Essa pergunta ativou meu cérebro “Dar a luz? Então eu vou parir por mim mesma?” Até então eu não estava acreditando que iria parir sem intervenção pesada.
Olhei de relance pelo quarto todo, vi um canto bem na frente da janela, no chão, apontei pra ele com o dedo, sem falar, sem sair daquele universo paralelo em que me encontrava. Fiquei apoiada num banquinho. Não estava legal, então pedi que Simão me sustentasse, pois queria ficar de cócoras. E começaram os puxos. A dor era muito intensa, e a cada contração vocalizava o mantra “A”, relaxava e soltava o períneo como havia treinado durante a gestação. Senti o círculo de fogo, uma ardência insuportável!!!! Mas estava acontecendo!!!! Enfim parir com consciência era parte da minha vida!! Após o círculo, a cada contração aquela vontade louca de fazer força. Me contive fazendo força de leve para não lacerar o períneo. Eu pensava durante a gestação que não saberia identificar o momento de fazer força, pois meu primeiro parto normal não tive essa percepção pelo tipo de parto que tive (deitada). No entanto, é tão instintivo que não tem como não saber!
O médico perguntou se eu queria sentir ela, coloquei a mão e senti a cabecinha dela saindo, que alegria! Que vontade de gritar! Então continuei relaxando o períneo e fazendo a força suavemente. Quando saiu a cabeça, o médico desfez três voltas do cordão umbilical no pescocinho dela! Só soube depois, pois na hora não tive nem vontade de perguntar, precisava me concentrar. Foi num deslize e ela saiu, veio imediatamente para os meus braços! Fiquei atônita, parecia um sonho, eu tinha conseguido parir ela! De cócoras, como sonhei.
E ela estava ali nos meus braços, linda! Outra indiazinha, olhinho puxado, cabeluda! Muito cabeluda! Igualzinha às irmãs! Ficou em silêncio, e depois de uns minutos espirrou, chorou! Coloquei ela em contato com minha pele. Ficamos com ela. Simão chorava também… e cortou o cordão umbilical após parar de pulsar!
Depois de uma hora mais ou menos, ele foi buscar nossas filhas mais velhas, por sorte conseguiram convencer na portaria a deixá-las entrar, e assim puderam conhecer a nova irmã logo na primeira hora.
Eu estava no céu. Era tanta adrenalina, queria falar, queria sair porta afora contando a todos, a energia que eu tinha era incrível, parecia que tinha usado um alucinógeno! Não parecia que havia ficado 38h em trabalho de parto! Estava renovada, forte, capaz de qualquer coisa!
Eu, com uma cesárea anterior, com 37 anos…me senti com muito poder! Tive uma laceração mínima que nem necessitou ponto! Períneo íntegro! Pensei que se meu primeiro parto tivesse sido assim, teria tido uma penca de filhos, um atrás do outro.
Uns 15 dias depois do parto, no entanto, bateu o arrependimento de ter ido ao hospital, quando escutei minhas filhas se queixarem de não terem visto Anahy nascer… Faltava tão pouco….Senti uma dor de não tê-las ao meu lado no parto, pois era um dos principais motivos de escolher o parto domiciliar. Passei dias chorando por isso, até compreender que naquele momento fiz o que meu instinto me pediu. Estava cansada, morta, sem forças.
Fazendo uma reflexão profunda sobre tudo que aconteceu, entendi que naquele momento do trabalho de parto eu ainda era aquela mulher-polvo, que queria abraçar o mundo, e nem no seu próprio parto abriu mão disso (em trabalho de parto, pensando nas crianças, sem desligar de nada, com a casa cheia)…. Aprendi muito de mim com essa experiência, me conheci demais, conheci meus limites, superei muitos medos, e parí todos eles junto com Anahy…E agora não sou mais a mesma mulher.
Serei eternamente grata à Rebeca, Fabi e Larissa por todo apoio que recebi, o respeito e carinho que tiveram comigo. Sem vocês, minhas amadas, eu não chegaria nem perto de viver o que vivi! Serão minhas irmãs do peito e de alma para o resto da minha vida! Amo vocês! Grata ao Lucas, por negligenciar meu pedido desesperado de analgesia! Esse médico apoiou minha decisão e teve paciência de sentar e esperar meu bebê nascer, enquanto fora do quarto seus colegas diziam “eu já teria feito uma episio, não tenho paciência para esperar tanto tempo, porque está parindo no quarto?”.
E o mais sublime dos apoios: Simão….meu companheiro fiel, firme, terno, de uma sensibilidade rara, homem lúcido e extremamente amoroso. Nosso laço foi fortalecido ainda mais, com mais esta experiência… Teria mais meia dúzia de filhos com este homem, que me apóia em todos momentos e decisões. A companhia dele foi fundamental, parceiro até debaixo d’água.
Às vezes quando conto a história de nascimento da Anahy escuto pessoas, mulheres em geral, dizerem “nossa, que guerreira que você foi”, “que coragem”, e coisas do tipo…Como a sociedade conseguiu impingir nas mulheres um medo de algo que elas são as únicas capazes? Digo sonoramente que todas somos guerreiras. A diferença é a assistência que as mulheres podem contar ao seu lado no momento do parto. Se toda mulher tivesse uma equipe humanizada com pessoas competentes, sensíveis, que trabalhem baseadas em evidências científicas, suportaria muito mais do que pensa ser capaz.
Realmente a humanidade esqueceu sua condição mamífera, o quanto a evolução nos deixou prontas para passar por este processo ao longo de milhares de anos…. Fiquei devaneando esta questão, pensando nas milhares de mulheres da espécie H. Sapiens que passaram pelo parto, desde os tempos remotos em que ainda éramos caçadores e coletores, tentando imaginar o universo físico e espiritual de cada uma, em cada geração... Viagens de bióloga…
O parto é um portal, de fato uma experiencia única na sexualidade de uma mulher, e que não pode ser vivido plenamente sem a assistência humanizada. Que a luz do conhecimento se faça para todas as mulheres e homens. Meu parto se deu, e mesmo não tendo sido exatamente como eu o desejei, foi lindo, foi o meu parto. Aprendi e renasci. E nada de lamentos, pois a luta está só começando…