sábado, 7 de maio de 2016

Pelos direitos dos meninos

Quando eu fiquei grávida pela primeira vez, torci muito pra ser um menino. Eu nem sabia o que era feminismo na época, mas sabia que não queria colocar mais uma mulher nesse mundo. A hora em que o médico disse "é uma menina", eu só consegui dizer "Porra Luciano, pra quê vc foi mandar o X?". Eu não sabia o porquê, mas não queria de jeito nenhum ter uma filha. Lembro de pensar "puta que pariu, mais uma sofredora nesse mundo"

Passei os nove meses da gravidez tentando achar uma saída pra conseguir criar uma mulher autônoma, que não fosse limitada pelo contexto social. Não queria que minha filha fosse uma vitima da sociedade. Queria destruir todas as estatísticas que gritam que meninas sofrem mais abusos, mais estupros, violência obstétrica e violência doméstica. Queria, literalmente, enfiar Aurora de volta na barriga. Até hoje eu e o pai dela fazemos um trabalho de tentar valoriza-la, de não aceitar limitações de gênero e tudo o mais. Não queria e nem quero que minha filha vire estatística. E é muito, mas muito desgastante. É um trabalho diário convencendo-a a nadar contra a corrente, a não aceitar quando os meninos não a deixam jogar futebol, a incentivar a ser esperta e inteligente, a pensar numa profissão ao invés de mofar esperando um príncipe encantado. É falar todo dia que ela não precisa ser bela, recatada e do lar, que ela pode ser o que quiser (inclusive, se quiser ser bela, recatada e do lar, tb pode, desde que seja por escolha e não imposição social). Sempre achei que ter menino fosse mais fácil, que eu não teria que me preocupar tanto se ela fosse um menino. Santa ingenuidade.

Daí que eu engravidei de novo. Dessa vez resolvemos não saber o sexo do bebê, porque pra nós não importava e seria uma emoção muito legal descobrir na hora do nascimento. Foram 9 meses rodando lugares e catando roupa unissex. Foram 9 meses ouvindo merda de gente na rua que era melhor ter um casal pra ficar mais bonitinho. E eu passei 9 meses falando que queria outra menina, por puro despeito mesmo e pra evitar falatório de gente tosca na minha orelha.

Mas a possibilidade de ser um menino me trouxe certas coisas a tona. Conversei muito com o Lu sobre infância, sobre padrões que a sociedade impõe nos guris desde cedo e comecei a ficar meio assustada. A realidade das meninas eu conheço, pq afinal de contas eu fui uma menina na sociedade brasileira não tem muito tempo, mas a dos meninos era um completo desconhecido pra mim. Não sabia nem limpar um pinto direito, que dirá saber dos dramas infantis dos muleques.

O bebê nasceu, e tcharam, é um menino. Eu não tinha noção do que é ser um homem numa sociedade patriarcal até o Dante nascer e eu tomar um banho de balde de merda na cabeça já nas primeiras horas de vida: "e o tamanho do saco dele? é grande?", algumas pessoas perguntavam. Depois, quando saímos na rua, alguns conhecidos vinham logo dizer "nossa, ele tem mt cara de hominho, vai ser disputado". Ou então "esse vai dar trabalho hein?". E o garoto só tem 17 dias. DEZESSETE DIAS DE VIDA. Estou, até agora, chocada. Quer dizer, ele JÁ tem a obrigação de ser um garanhão, macho viril, reprodutor e HETERO. Não pode tratar mulher igual gente, pq já tem a obrigação social de "dar trabalho" no melhor estilo "prendam suas cabras que meus bodes estão soltos". Não pode usar roupa colorida, tem que ser azul, pq senão a tia da padaria não vai saber que é um menino, afinal de contas, onde já se viu homi usar a roupa rosa que herdou da irmã? E se ele for gay? E se ele for hetero, e mesmo assim quiser usar rosa e ser um cara sensível, qual o problema?

Eu olho pro lado e vejo esse bebê, lindo, rosado e bochechudo que, por acaso, também tem um saco e um pênis, e não consigo pensar em nada mais do que "quero que ele seja feliz". Dane-se se ele vai "fazer sucesso com as mulheres", se vai jogar futebol, se vai beber com os amigos assistindo a libertadores no maior estilo clichê masculino, se vai chorar quando der vontade e brincar de casinha com bonecas se quiser. As escolhas são dele! Ele, nem nenhum menino, precisa ter a obrigação de ser viril e conquistador. É MUITA coisa pra uma criança tão pequena.

E, pra coroar com chave de ouro, conversando com amigas descobri que meninos também são tão abusados quanto meninas. Que a diferença é que, por conta dessa palhaçada de contexto social, os meninos não falam. Que os meninos são obrigados a acharem o abuso uma coisa boa, pois ter alguém mexendo no pênis dele deveria ser motivo de orgulho e virilidade, independente da vontade deles. E que, pro meus espanto, vou ter tanta ou mais preocupação com o meu filho, justamente porque a sociedade brutaliza os meninos na mesma proporção em que fragiliza e incapacita as mulheres.

Ao mesmo tempo em que me dei conta disso tudo, também percebi que, apesar de óbvio, o patriarcado também oprime os homens. Que ser obrigado a estar de pau duro o tempo todo também faz mal. Que não ter direito de chorar porque "é coisa de mulherzinha", que não poder pedir colo pra mãe, é tão escroto quanto dizer que uma menina não pode fazer determinada coisa porque ela é menina. E que mudar de perspectiva é importante pra não ficarmos engessados. Principalmente, que eu vim pra esse mundo pra pagar a minha língua e engolir todos os meus preconceitos em uma encarnação só, pq justamente quando eu achei que tava "salva", me vem mais um desafio.


2 comentários:

Sarah disse...

Pois é, nesse mundo ninguém tá salvo da sociedade, o negócio é ter a cabeça no lugar e concepções próprias e firmes, coisa que só bons pais podem ajudar a desenvolver quando ainda se é criança.

Anônimo disse...

Sou contra o feminismo no geral.

Mas quem me dera, quem me dera o feminismo fosse essa perspectiva que você expressou nesse post. Quem me dera fosse tão simplesmente sobre igualdade e justiça entre gêneros, contra o puro e indiscriminado sexismo. Eu seria feminista com gosto.

Você provavelmente vai me responder que feminismo é realmente isso, mas me desculpe, não é o que observo. De passar a vida toda reprimido por imposições sociais, sem ninguém para lutar por mim além de eu mesmo, eu me acostumei com as imposições, com cada uma delas. Não tive opção, assim como a maioria dos meninos por aí, seguindo o papel que a sociedade impõe. E não falamos disso, nem entre nós mesmos; nem ao menos cogitamos a possibilidade de questionar. É tabu. Quando eu vejo algum em conflito tão grande, como os homossexuais, a ponto de sustentar esse papel ser impossível, eu sei que ele não está questionando se é errado ser o que ele é, eu sei que ele acredita que é errado ser o que ele é. Eu sei disso pois, apesar de sermos diferentes, sei que o rótulo comum de "homens" nos jogou a mesma carga.

Isso não significa que a luta recente pelos direitos dos homossexuais seja uma quebra de tabu. Não para nós, homens heterossexuais: pois somos levados a enxergar o homossexualismo como mera anomalia, e assim o tabu permanece, e até indiretamente contribui para ele: "se você é homem, tem que assumir seu papel de machão, a menos que não seja homem, mas gay (no tom mais pejorativo possível)."